Ana,
pro desafio de março eu escolhi A Mulher que Escreveu a Bíblia porque, além de estar na minha fila de cabeceira mental (mas não mais tão mental assim) — por indicação de um colega de trabalho —, Moacyr Scliar é um autor que eu estava querendo reler há muito já. Lembro de ter lido muitos contos dele no período pré-faculdade e ter gostado bastante (pretendo reler J. J. Veiga também, outro autor com quem tive um contato rápido e de quem guardei ótimas lembranças).
O romance (ou novela?) é narrado em primeira pessoa por uma mulher que descobre, em sessões de terapia de vidas passadas, que foi esposa de Salomão (o rei bíblico). Aliás, uma das setecentas. E, embora a mais culta, inteligente e a única que sabia ler, ela era a mais feia. Aliás, a feiúra da personagem é uma constante em todo livro, tratada pela mesma, na maioria das vezes, com muito humor (característica do autor, aliás).
Digamos que na escala de zero a dez ele [Deus] se tenha autoconferido um oito, a imperfeição correndo por conta dos répteis e da feia.
(…)
Tenho belas mãos (aliás tenho belos seios, belos quadris — sou da variedade paradoxal conhecida como feia-de-cara-mas-boa-de-corpo), mas de há muito aprendera a conter minhas emoções. Já me bastava com ser feia; chorosa, eu ficaria um espanto.
A personagem (sem nome) é apaixonante! E, vamos dizer, até feminista ;D Já no prefácio, é dito sobre ela, pelo próprio autor, que
Não era um escriba profissional, mas antes uma pessoa altamente sofisticada, culta e irônica, destacada figura da elite do rei Salomão […]; uma mulher, que escreveu para seus contemporâneos como mulher.
A questão da mulher naquelas épocas pré-bíblicas é sempre lembrada também (os grifos são meus).
(era um varão que meu pai queria para primogênito; aliás, só queria filhos homens, mas Jeová o castigou dando-lhe três filhas, a primeira medonha)
(…)
Uma primogênita era sempre um inconveniente, para dizer o mínimo: não garantia sucessão, não ajudava no trabalho e ainda precisaria de um dote para poder casar. Agora, uma primogênita feia era mais do que isso, era um descalabro cujo destino só poderia ser o precipício.
A personagem vive tranquilamente até os 18 anos sem nunca ter visto um reflexo do próprio rosto. Um dia, descobre que a irmã mais velha tinha um espelho — artigo raro e de luxo — e resolve dar uma olhada.
— Resumindo, era isso o que eu via: a) assimetria flagrante; b) carência de harmonia; c) estrabismo (ainda que moderado); d) excesso de sinais. Falta dizer que o conjunto era emoldurado (emoldurado! Essa é boa, emoldurado! Emoldurado, como um lindo quadro é emoldurado! Emoldurado!) por uns secos e opacos cabelos, capazes de humilhar qualquer cabeleireiro.
O que eu estava vendo era a feiúra arcaica, a feiúra ancestral, uma feiúra consolidada pelos anos, pelos milênios, talvez.
(…)
por que cedi à maldita curiosidade, à maldita vaidade? Por que não me arrancou Jeová da mão aquele revelador, mas funesto objeto? Hein, Jeová? Por que não tomaste alguma providência, tu que sabes tudo, tu que podes tudo? Podias ter reduzido o espelho a pó, com o simples ato de tua vontade. Por que não o fizeste? Será que não existes, amigo? Hein? Será que não passas de uma abstração, uma ilusão da ótica emocional? Aquilo, sem dúvida, era a resposta a um pecado, a um crime. Agora eu era a feia, e tudo em minha vida seria condicionado por essa feiúra.
Ainda assim, por ser a filha mais velha de um chefe de aldeia, ela é designada para se casar com o rei, por quem se apaixona profundamente. Salomão é descrito como um homem lindo, educado, inteligente mas… um pouco mané. Ao chegar no harém e ver a situação daquelas mulheres — confinadas o dia inteiro e vivendo totalmente para satisfazer o rei (a quem talvez só vissem uma vez durante toda a vida) — ela resolve dar um jeito nas coisas (e, claro, reinvindicar que o Salomão consume o casamento, coisa que não tinha acontecido até então)
O objetivo final do movimento seria, não acabar com a instituição harém — muitas mulheres nem saberiam viver em liberdade —, mas pelo menos estabelecer uma pauta de direitos.
Numa tentativa de fuga do palácio, Salomão descobre que a esposa — como pode? — sabe ler e escrever. O escriba de seu pai a havia ensinado escondido por ter visto nela uma grande inteligência e inadequação com a situação reservada à mulher naqueles tempos. E, pela primeira vez, ela é chamada ao quarto do marido à noite.
Em vez de uma declaração de amor, uma proposta editorial.
Salomão queria escrever seus feitos e de seus ancestrais. Aliás, porque não escrever sobre a criação do mundo? sobre Deus? ora, ele era Salomão, claro que ele podia. Mas os escribas designados para isso vinham falhando já há muito, e ele vê na mulher a oportunidade de ter sua grande obra (maior em importância até mesmo que o Templo de Salomão) finalmente ser acabada. Mas ela estava muito mais pendida a escrever ficção, hahaha! Sobre Adão e Eva (e a vida sexual dos dois), ela escreve
Todas as posições eram usadas, todas as variantes experimentadas, isso sob o olhar curioso das cabras e dos ornitorrincos e, mais, sob o olhar benévolo de Deus. Que, na minha versão, não os expulsava do Paraíso; ao contrário, encorajava-os: agora que descobristes o amor, podeis enfrentar a vida como ela é, a vida cheia de som e de fúria.
Sua versão da Bíblia — muito melhor, aliás 😛 — é altamente censurada, claro. Ela enche os escribas de questionamentos (mas como Caim se casou com uma mulher de outra tribo se só sua família havia sido criada até então?), mas, com o tempo, ela vai ganhando mais e mais a admiração de Salomão, que a trata diferente das outras esposas (mas não ainda como esposa, mas como amiga, ou conselheira. Ou como um homem a quem admira, o que me lembrou aquele trecho de uma fala da Marylin Frye, de 1983
“Dizer que um homem é heterossexual implica somente que ele mantém relações sexuais [fode] exclusivamente com [ou submete sexualmente] o sexo oposto, ou seja, mulheres. Tudo ou quase tudo que é próprio do amor, a maioria dos homens héteros reservam exclusivamente para outros homens. As pessoas que eles admiram; respeitam; adoram e veneram; honram; quem eles imitam, idolatram e com quem criam vínculos mais profundos; a quem estão dispostos a ensinar e com quem estão dispostos a aprender; aqueles cujo respeito, admiração, reconhecimento, honra, reverência e amor eles desejam: estes são, em sua maioria esmagadora, outros homens. Em suas relações com mulheres, o que é visto como respeito é gentileza, generosidade ou paternalismo; o que é visto como honra é a colocação da mulher em uma redoma. Das mulheres eles querem devoção, servitude e sexo. A cultura heterossexual masculina é homoafetiva; ela cultiva o amor pelos homens.”)
Algumas vezes, em momentos de revolta (a vida com certeza é mais fácil pros estúpidos), a personagem maldiz a condição de inteligente (#quemnunca #modéstia)
Já não bastava tua feiúra, tinhas de bancar a inteligente?
Eu poderia falar eternamente desse livro, ou citá-lo inteiro. Mas vai lá na Dropbox, pra facilitar as coisas 😉
–Anna