Uzodinma Iweala – Feras de Lugar Nenhum

Ana,

a mesma amiga que me indicou o Hibisco Roxo indicou também esse romance do nigeriano Uzodinma Iweala. Eu fiquei espantadíssima de saber que ele lançou o livro com apenas 23 anos de idade (não por causa da idade em si, mas pela densidade da escrita) :-O

Feras de Lugar Nenhum é um livro violentíssimo, não somente por ser ambientada numa época de guerra. O personagem principal, Agu, é arrancado violentamente da sua família, da escola e do convívio com seus amigos, e pelas circunstâncias acaba se tornando uma criança-soldado (já começa o nó na garganta daqui), jogado na violenta realidade de um exército faminto e descalço, de um sol escaldante e de um verão onde faz calor até mesmo a noite e você acha que vai enlouquecer por causa dos mosquitos.

Esse livro, Hibisco  Disgrace me despertaram sentimentos parecidos, talvez por mostrarem histórias, como você colocou, difíceis de aceitar. Lá no fundo você quer que Agu reencontre a família, apesar de sabermos que o pai está morto, e que de repente chegue a notícia de que a guerra acabou e que o menino possa voltar pra escola e pros livros que ele tanto gostava. Mas não há redenção. Não há um deus ex-machina. É tudo cru, duro, cruel. Tudo piora. Você tem que ir parando às vezes pra tomar ar, em trechos como o que ele conta que, por ser pequeno e as armas serem poucas, ele tem que usar um facão pra matar; ou que ele narra uma cena horrível de assassinato de uma mãe e uma filha de colo; ou quando ele e um amigo são abusados sexualmente pelo comandante da tropa.

É tudo feio, é tudo sem esperança e, o pior, é tudo muito verossímil. É um livro curto (menos de 200 páginas), mas nada sobra ou falta, e a dose de realidade é cavalar, mas altamente recomendável.

Então digo a ela, se eu contar todas as coisas que fiz, você vai pensar que eu sou uma espécie de fera ou diabo. […] E digo a  ela, tudo bem. Sou todas essas coisas. Sou todas essas coisas, mas uma vez já tive uma mãe, e ela me amava.

– Anna

Chimamanda Ngozi Adichie – Hibisco Roxo

Ana,

você já chorou tanto com um livro que sua cabeça doeu? Eu já havia chorado por causa de livros (inclusive no ônibus, hehehe), mas geralmente isso acontece num trecho ou em outro. Com Hibisco Roxo, o choque passa para o choro com uma frequência tão rápida que você nem termina de digerir uma parte e já está chorando por outra.

Não que isso seja um qualificador. Acho que ser tocado por alguma obra (de arte, literária, música etc) é bem pessoal, e às vezes as pessoas me dizem que choraram por causa de alguns livros que me criam um preconceito instantâneo. Mas, em Hibisco Roxo, eu chorei da minha cabeça doer. Li o início do livro e fiquei espantada com a violência e a hipocrisia (ou fanatismo?) de Eugene, pai da protagonista (Kambili, uma menina de 15 anos), um nigeriano convertido ao catolicismo que chegou a um ponto tal de extremismo religioso que não fala com o próprio pai, um senhor já idoso que não abre mão da ancestralidade de seu povo. Quando retomei a leitura, não consegui parar até terminar tudo.

O choque do pai queimar os pés da própria filha por ter passado a noite na mesma casa que o avô (pagão) é maior quando você sabe que esse mesmo pai é dono do único jornal que se opõe ao governo militar cruel que tomou a Nigéria. Como pode? Como pode um homem riquíssimo que recebe filas e filas de pessoas famintas na sua porta não comprar remédio para o próprio pai? Como alguém que compra casa e carro pra amigos em dificuldade financeira vê a própria irmã cozinhando em fogão à querosene e se irrita quando sua esposa sugere que ele dê um botijão de gás de presente a ela? Como um cara que se penitencia e se confessa todos os fins de semana e sustenta uma igreja praticamente sozinho bate na mulher até ela abortar?

A família é riquíssima, e Kambili é chamada de patricinha na escola, onde não tem amigas. Seu melhor amigo é o irmão Jaja, de quem é muito próxima, e é quem começa a contestar o pai e tenta proteger a menina de seus maus tratos. Com o endurecimento da ditadura na Nigéria, o jornal do pai (que também é industrial) recebe ameaças do governo, e alguns de seus amigos e jornalistas começam a sumir ou a ser assassinados. O pai martiriza a família de uma forma que acaba por destruir a vida de todos, levando a caminhos que a gente sequer imaginava.

Não tem como não se apaixonar pela tia de Kambili, Ifeoma, irmã do pai e professora universitária, viúva e que cria os filhos de outra forma, apesar de também serem católicos. Não tem como não se apaixonar pelo Padre Amadi, por quem todas as meninas do bairro são apaixonadas, inclusive Kambili (e fica claro que ela é correspondida). Não tem como não ficar um pouco desesperada como Kambili e Jaja quando a única saída da tia, há meses sem salário e trabalhando numa universidade sucateada que recebe ameaças de “informantes” do governo militar o tempo todo, resolve se mudar para os Estados Unidos, e quando o Padre Amadi é transferido para a Alemanha. Você entra tanto na história que chora inclusive quando o visto da tia sai.

A timidez de Kambili (que ela descreve como “bolhas de ar na garganta”) e o pavor inflingido pelo pai fazem com que ela se veja sempre numa posição confusa de buscar a aprovação paterna a qualquer custo e se culpando por ter ficado em segundo lugar na turma, ou achando que realmente merece apanhar por ter feito uma oração, segundo o pai, “muito curta” antes do almoço. A mãe, também sempre acossada, não toca no assunto com ninguém e se restringe a cuidar dos ferimentos próprios e dos filhos depois das surras colossais.

O desespero de estar sem saída, de ver as únicas pessoas com quem se sentem bem irem embora, de uma religião opressora e de uma vida doméstica insuportável vai levando a vida dos personagens a decisões sérias.

Há muitas coisas a serem faladas sobre o livro. O amadurecimento da menina, o papel feminino (marcado pelo contraponto entre sua mãe e sua tia), as contradições do pai, a valoração da cultura europeia sobre a cultura africana, os medos e suas várias caras, o apoio e amor que ela encontra na casa da tia… mas acho que não conseguiria abarcar tudo. Esse é um daqueles livros que têm que ser lidos, talvez mais de uma vez. Eu ainda não tenho coragem suficiente pra ler uma próxima

– Anna